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A trajetória artística dos palhaços contemporâneos brasileiros tem cruzamentos de grande intensidade que tem expandido o ofício de fazer rir, ampliado público e alcançado uma imensa profundidade de investigação.
Minha trajetória se cruza com as palhaças de Paola Musatti e Vera Abud, onde entra o significativo passo de reestruturação do arquétipo do palhaço, cujo universo é predominantemente masculino, para a sua reinvenção do âmbito feminino.
Trabalhei com as duas quando ainda iniciavam na arte da palhaçaria, em 1996, quando integravam o elenco de Zèrói, uma grande montagem de rua dos Parlapatões feita em conjunto com a trupe Nau de Ícaros da qual Musatti fazia parte e Abud era atriz convidada. Ali já percebi o potencial criativo de ambas bem como sua impressionante dedicação e disciplina na construção de uma cena.
Tempos depois, as assisti no espetáculo de improvisação Jogando no Quintal, mas ainda não as destacava como uma dupla de palhaças, por estarem em um dos coletivos artísticos mais ousados e divertidos que já vi nos últimos tempos.
Por conhecê-las, evidentemente, me causou uma agradável surpresa vê-las jogando implacavelmente no risco do aqui-agora dos jogos de improvisar.
Quando realizamos o I Festival de Cenas Cômicas do Espaço Parlapatões as duas trouxeram o quadro cômico Pelo Cano que origina o atual espetáculo e, diante de fortes concorrentes e de um júri de especialistas, foram as vencedoras.
A exploração óbvia do ambiente lúdico ultrapassava o lugar-comum por buscar uma dimensão poética que torna a comicidade mais relevante pelo que tem de non sense, além de ganhar um arremate que traz o publico a reflexões de dimensões filosóficas. Uma construção cênica de difícil execução apresentada com enorme fluência.
Posteriormente, as convidamos para participar com o espetáculo completo do evento Palhaçada Geral, onde se evidenciou que o número cômico havia ganhado corpo e estava acompanhado de outros números, igualmente criativos, claros na linguagem e que eram partes indissociáveis de um todo mais contundente. Enfim, elas não se limitaram às conquistas já alcançadas e arriscaram vôos mais altos. Felizmente se deram bem, dado à visível delicadeza, dedicação e carinho com que Pelo Cano traz ao universo claunesco.
O principal não está no apuro técnico nem na maturidade criativa, mas na forma livre como as duas palhaças jogam entre si. Este é o elemento fundamental, que faz da atuação das duas uma grande referência contemporânea do que a arte dos palhaços contemporâneos tem a aprender e apreender do universo feminino cômico e cheio de talento.
Hugo Possolo
Parlapatões Patifes e Paspalhões